Em busca da perfeição
Psicólogo Gilvan Melo
Uma das heranças do período do renascimento foi o reconhecimento do homem
como um ser superior aos animais pelo simples fato de pensar. “Penso, logo
existo”, dizia o célebre pensador francês René Descartes. Entretanto, foi outro
francês, Jean-Jaqques Rousseau, quem afirmou que não é a racionalidade que
distingue os homens dos animais, mas a compaixão, a liberdade e a perfectibilidade.
É sobre esta última que refletiremos nesta tarde.
Criados à imagem e semelhança de Deus, que é perfeito, os cristãos
entendem que todo e qualquer sofrimento é justificado pela certeza da salvação,
através do caminho da santidade; santidade aqui vista como um processo de
perfeição. “Sede perfeitos como o Vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).
Aliás, é sob esta inspiração que nascem a Igreja, os carismas, os Santos e
Santas da Igreja.
No campo da filosofia grupos distintos se dividiam em torno de duas
concepções: o homem nasce mau e a sociedade tenta educá-lo para o bem (visão de
Thomas Hobbes) ou o homem nasce bom e a sociedade o corrompe (visão de Jaqques
Rosseau). Nasciam, então, dois eixos em torno da sócio-política: o
totalitarismo e a democracia. Na física uns acreditavam que o mundo caminhava
em direção à ordem, outros afirmavam que o mundo tendia à desordem. Na
sociologia moderna alguns pensam a sociedade como um sistema ordenado, em
contraposição à concepção dialética de que o conflito é a mola propulsora da
transformação social. Enfim, em diversas áreas do conhecimento, duelam as duas
correntes: a que acredita na força da ordem, de que tudo tende à perfeição, e a
segunda, que acredita que tudo está à mercê do acaso. Especificamente no campo
da psicologia a psicanálise, por exemplo, privilegia em suas pesquisas e
abordagens, o aspecto neurótico da pessoa, enquanto as abordagens humanistas, a
exemplo da logoterapia, privilegiam o processo de crescimento humano,
acreditando que tende a pessoa ao desenvolvimento pleno de suas capacidades
psíquicas e espirituais.
Diante desta dicotomia habita um perigo: há muitas pessoas que confundem
busca de perfeição com perfeccionismo. Enquanto a busca pela perfeição é
entendida como um dom de Deus oferecido à pessoa, o perfeccionismo é um sintoma
do obsessivo-compulsivo que encontra nele uma satisfação neurótica. Freud aqui
tem razão: pessoas perfeccionistas tentam esconder o complexo da incerteza,
proveniente da neurose obsessivo-compulsiva, por detrás do discurso de busca de
santidade. São pessoas que exigem demais de si próprios, dos outros e de Deus;
criam um deus falso, feito à imagem e semelhança da sua própria neurose. O
padre americano Richard Rohr, um dos autores do livro O Eneagrama: as noves faces da alma, foi um dos poucos a admitir
esta suposta intenção. Perfeccionista convicto, diz Richard: “A busca da
perfeição domina nossa vida e é a nossa tentação propriamente dita.” Diz ainda:
“Sei que fiz meu trabalho não apenas por amor ao Senhor Jesus. Parte daquilo
foi feito pura e simplesmente por e para Richard.”
No filme Cisne Negro, de Darren
Aronofsky, é possível aprendermos uma lição: a personagem Nina, caracterizada
como obsessivo-compulsiva, buscava atingir o grau último de perfeição através
da dança. No entanto, para ser perfeita precisava ser imperfeita a ponto de
refazer seus passos de bailarina de uma forma mais espontânea e mais leve, ou
seja, necessitava aprender a fluidez imperfeita das dançarinas iniciantes. Sobre
esta questão Viktor Frankl acrescenta que quando buscamos a santidade/perfeição
não a encontramos, porque ela não deve ser uma meta, senão uma vivência.
Enfim, precisamos nos questionar: buscamos a perfeição sem a pretensão de
adquiri-la ou o perfeccionismo sem a dignidade de assumirmos que trata-se de
uma compulsão? Deixemos o padre Richard Rohr concluir: “Devemos dar nomes às
nossas ilusões e desmascará-las, a fim de abrir lugar à graça de Deus que pode
ajudar-nos a construir uma vida autêntica em vez de enganarmos a nós mesmos.”
FELIZ SEMANA PARA TODOS.